ELES, OS OUTROS
Eles chegam de todas as direções, na moldura dos acontecimentos. São eles os outros, nossos irmãos de caminho, que se transformam em caminho para o Mais Alto.
É por eles que a bondade do Senhor nos encontra, habilitando-nos para isso.
No mundo, repontam no lar por parentes e associados no vínculo doméstico que se nos fazem professores de burilamento espiritual.
São amigos e nos ajudam a executar os encargos de que a vida nos encarrega ou são adversários e nos radiografam os recessos da alma, fixando-nos os mínimos defeitos e fim de que venhamos a corrigi-los.
Aparecem na posição de necessitados, testando-nos o amor e o desprendimento da posse, ou benfeitores que nos estendem o coração e os braços em forma de auxílio, afirmando-nos sem palavras que jamais nos achamos esquecidos de Deus. É através deles, os outros, que efetivamente somos nós em nós.
Os que brilham na vanguarda estão aptos a instruir-nos e os que se situam à retaguarda são aqueles que nos avaliam as possibilidades de auxiliar. Os mais felizes são aqueles que já trabalham, de algum modo, em favor de muitos ou a benefício de alguém e, por este motivo, são os que constroem. Os menos felizes são aqueles outros que ainda não conseguem aceitar o valor do trabalho e a felicidade de servir e, por isto, são aqueles que esperam.
Todos, porém, somos filhos da Sabedoria Divina necessitados uns dos outros.
Observemos a nossa conduta, diante do próximo, porque, em verdade, os outros nos medem a altura espiritual, no dia-a-dia, trazendo-nos, segundo as nossas próprias necessidades, o ensinamento da justiça e o socorro da bondade que se derramam das Leis da Vida. E a vida é sempre uma escola para todos, mas urge considerar que são os outros que nos traçam a nota ao progresso e ao merecimento de cada um, no currículo das lições.
-( Mãos Unidas - Chico Xavier / Emmanuel )-
Amados irmãos, bom dia!
Terminamos uma série de estudos e a partir de hoje iremos começar uma nova série de reflexões para o nosso crescimento pessoal e desejamos seja de grande proveito.
Achamos interessante começar conhecendo a biografia de Hippolyte Léon Denizard Rivail, esse é o nome de Allan Kardec, o codificador escolhido. A seguir faremos o estudo sobre o que é o Espiritismo, através do livro de mesmo nome deste.
BIOGRAFIA DE ALLAN KARDEC
Minhas senhoras, meus senhores: Muitas pessoas que se interessam pelo Espiritismo manifestam muitas vezes o pesar de não possuírem senão muito imperfeito conhecimento da biografia de Allan Kardec, e de não saberem onde encontrar, sobre aquele a quem chamamos mestre, as informações que desejariam conhecer.
Pois é para honrar Allan Kardec e festejar a sua memória que nos achamos hoje reunidos, e um mesmo sentimento de veneração e de reconhecimento faz vibrar todos os corações. Em respeito ao fundador da filosofia espírita, permiti-me, no intuito de tentar corresponder a tão legítimo desejo, que vos entretenha alguns momentos com esse mestre amado, cujos trabalhos são universalmente conhecidos e apreciados, e cuja vida íntima e laboriosa existência são apenas conjeturadas.
Se fácil foi a todos os investigadores conscienciosos inteirarem-se do alto valor e do grande alcance da obra de Allan Kardec pela leitura atenta das suas produções, bem poucos puderam, pela ausência até hoje de elementos para isso, penetrar na vida do homem íntimo e segui-lo passo a passo no desempenho da sua tarefa, tão grande, tão gloriosa e tão bem preenchida. Não somente a biografia de Allan Kardec é pouco conhecida, senão que ainda está por ser escrita. A inveja e o ciúme semearam sobre ela os mais evidentes erros, as mais grosseiras e as mais impudentes calúnias.
Vou, portanto, esforçar-me por mostrar-vos, com luz mais verdadeira, o grande iniciador de quem nos desvanecemos de ser discípulos. Todos sabeis que a nossa cidade se pode honrar, a justo título, de ter visto nascer entre seus muros esse pensador tão arrojado quão metódico, esse filósofo sábio, clarividente e profundo, esse trabalhador obstinado cujo labor sacudiu o edifício religioso do Velho Mundo e preparou os novos fundamentos que deveriam servir de base à evolução e à renovação da nossa sociedade caduca, impelindo-a para um ideal mais são, mais elevado, para um adiantamento intelectual e moral seguros.
Foi, com efeito, em Lyon, que, a 3 de outubro de 1804, nasceu de antiga família lionesa, com o nome de Rivail, aquele que devia mais tarde ilustrar o nome de Allan Kardec e conquistar para ele tantos títulos à nossa profunda simpatia, ao nosso filial reconhecimento. Eis aqui a esse respeito um documento positivo e oficial:
“Aos 12 do vindemiário do ano XIII, auto do nascimento de Denizard Hippolyte-Léon Rivail, nascido ontem às 7 horas da noite, filho de Jean-Baptiste Antoine Rivail, magistrado, juiz, e Jeanne Duhamel, sua esposa, residentes em Lyon, rua Sala, no 76. O sexo da criança foi reconhecido como masculino.
Testemunhas maiores: Syriaque-Frédéric Dittmar, diretor do estabelecimento das águas minerais da rua Sala, e Jean-François Targe, mesma rua Sala, à requisição do médico Pierre Radamel, rua Saint-Dominique, no 78.
Feita a leitura, as testemunhas assinaram, assim como o Maire da região do Sul.
O presidente do Tribunal.” (assinado): Mathiou
O futuro fundador do Espiritismo recebeu desde o berço um nome querido e respeitado e todo um passado de virtudes, de honra, de probidade; grande número dos seus antepassados se tinham distinguido na advocacia e na magistratura, por seu talento, saber e escrupulosa probidade.
Parecia que o jovem Rivail devia sonhar, também ele, com os louros e as glórias da sua família. Assim, porém, não foi, porque, desde o começo da sua juventude, ele se sentiu atraído para as Ciências e para a Filosofia. Rivail Denizard fez em Lyon os seus primeiros estudos e completou em seguida a sua bagagem escolar, em Yverdun (Suíça), com o célebre professor Pestalozzi, de quem cedo se tornou um dos mais eminentes discípulos, colaborador inteligente e dedicado. Aplicou-se, de todo o coração, à propaganda do sistema de educação que exerceu tão grande influência sobre a reforma dos estudos na França e na Alemanha. Muitíssimas vezes, quando Pestalozzi era chamado pelos governos, um pouco de todos os lados, para fundar institutos semelhantes ao de Yverdun, confiava a Denizard Rivail o encargo de o substituir na direção da sua escola. O discípulo tornado mestre tinha, além de tudo, com os mais legítimos direitos, a capacidade requerida para dar boa conta da tarefa que lhe era confiada. Era bacharel em Letras e em Ciências e doutor em Medicina, tendo feito todos os estudos médicos e defendido brilhantemente sua tese.
Linguista insigne, conhecia a fundo e falava corretamente o alemão, o inglês, o italiano e o espanhol; conhecia também o holandês, e podia facilmente exprimir-se nesta língua. Denizard Rivail era um alto e belo rapaz, de maneiras distintas, humor jovial na intimidade, bom e obsequioso. Tendo-o a conscrição incluído para o serviço militar, ele obteve isenção e, dois anos depois, veio fundar em Paris, à rua de Sèvres, no 35, um estabelecimento semelhante ao de Yverdun. Para essa empresa se associara a um dos seus tios, irmão de sua mãe, o qual era seu sócio capitalista.
No mundo das letras e do ensino, que frequentava em Paris, Denizard Rivail encontrou a Srta. Amélie Boudet, professora com diploma de 1a classe. Pequena, mas bem-proporcionada, gentil e graciosa, rica por seus pais e filha única, inteligente e viva, ela soube por seu sorriso e predicados fazer-se notar pelo Sr. Rivail, em quem adivinhou, sob a franca e comunicativa alegria do homem amável, o pensador sábio e profundo, que aliava grande dignidade à mais esmerada urbanidade. O registro civil nos informa que:
“Amélie-Gabrielle Boudet, filha de Julien-Louis Boudet, proprietário e antigo tabelião, e de Julie-Louise Seigneat de Lacombe, nasceu em Thiais (Sena), aos 2 do Frimário do ano IV (23 de novembro de 1795).”
A Srta. Amélie Boudet tinha, pois, mais nove anos que o Sr. Rivail, mas na aparência dir-se-ia ter menos dez que ele, quando, em 6 de fevereiro de 1832, se firmou em Paris o contrato de casamento de Hippolyte-Léon-Denizard Rivail, diretor do Instituto Técnico à rua de Sèvres (Método de Pestalozzi), filho de Jean-Baptiste Antoine e senhora, Jeanne Duhamel, residentes em Château-du-Loir, com Amélie-Gabrielle Boudet, filha de Julien-Louis e senhora Julie-Louise Seigneat de Lacombe, residentes em Paris, rua de Sèvres, no 35.
O sócio do Sr. Rivail tinha a paixão do jogo; arruinou o sobrinho, perdendo grossas somas em Spa e em Aix-la-Chapelle. O Sr. Rivail requereu a liquidação do Instituto, de cuja partilha couberam 45.000 francos a cada um deles. Essa soma foi colocada pelo Sr. e Sra. Rivail em casa de um dos seus amigos íntimos, negociante, que fez maus negócios e cuja falência nada deixou aos credores. Longe de desanimar com esse duplo revés, o Sr. e Sra. Rivail lançaram-se corajosamente ao trabalho. Ele encontrou e pôde encarregar-se da contabilidade de três casas, que lhe produziam cerca de 7.000 francos por ano; e, terminado o seu dia, esse trabalhador infatigável escrevia à noite, ao serão, gramáticas, aritméticas, livros para estudos pedagógicos superiores; traduzia obras inglesas e alemãs e preparava todos os cursos de Levy-Alvarès, frequentados por discípulos de ambos os sexos do faubourg Saint-Germain. Organizou também em sua casa, à rua de Sèvres, cursos gratuitos de Química, Física, Astronomia e Anatomia comparada, de 1835 a 1840, e que eram muito frequentados.
Membro de várias sociedades sábias, notadamente da Academia Real d’Arras, foi premiado, por concurso, em 1831, pela apresentação da sua notável memória: Qual o sistema de estudo mais em harmonia com as necessidades da época?
Dentre as suas numerosas obras convém citar, por ordem cronológica:
Plano apresentado para o melhoramento da instrução pública, em 1828; em 1829, 4 segundo o método de Pestalozzi, ele publicou, para uso das mães de família e dos professores, o Curso prático e teórico de Aritmética; em 1831 fez aparecer a Gramática francesa clássica; em 1846, o Manual dos exames para obtenção dos diplomas de capacidade, soluções racionais das questões e problemas de Aritmética e Geometria; em 1848 foi publicado o Catecismo gramatical da língua francesa; finalmente, em 1849, encontramos o Sr. Rivail professor no Liceu Polimático, regendo as cadeiras de Fisiologia, Astronomia, Química e Física. Em uma obra muito apreciada resume seus cursos, e depois publica:
Ditados normais dos exames na Municipalidade e na Sorbonne; Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas. Tendo sido essas diversas obras adotadas pela Universidade de França, e vendendo-se abundantemente, pôde o Sr. Rivail conseguir, graças a elas e ao seu assíduo trabalho, uma modesta abastança. Como se pode julgar por esta muito rápida exposição, o Sr. Rivail estava admiravelmente preparado para a rude tarefa que ia ter que desempenhar e fazer triunfar. Seu nome era conhecido e respeitado, seus trabalhos justamente apreciados, muito antes que ele imortalizasse o nome de Allan Kardec. Prosseguindo em sua carreira pedagógica, o Sr. Rivail poderia viver feliz, honrado e tranquilo, estando a sua fortuna reconstruída pelo trabalho perseverante e pelo brilhante êxito que lhe havia coroado os esforços, mas a sua missão o chamava a uma tarefa mais onerosa, a uma obra maior, e, como teremos muitas vezes ocasião de o evidenciar, ele sempre se mostrou à altura da missão gloriosa que lhe estava reservada. Seus pendores, suas aspirações, tê-lo-iam impelido para o misticismo, mas a educação, o juízo reto, a observação metódica, conservaram-no igualmente ao abrigo dos entusiasmos desarrazoados e das negações não justificadas.
Foi em 1854 que o Sr. Rivail ouviu pela primeira vez falar nas mesas girantes, a princípio do Sr. Fortier, magnetizador, com o qual mantinha relações, em razão dos seus estudos sobre o Magnetismo. O Sr. Fortier lhe disse um dia: “Eis aqui uma coisa que é bem mais extraordinária: não somente se faz girar uma mesa, magnetizando-a, mas também se pode fazê-la falar. Interroga-se, e ela responde.”
— Isso, replicou o Sr. Rivail — é uma outra questão; eu acreditarei quando vir e quando me tiverem provado que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir, e que se pode tornar sonâmbula. Até lá, permita-me que não veja nisso senão uma fábula para provocar o sono. Tal era a princípio o estado de espírito do Sr. Rivail, tal o encontraremos muitas vezes, não negando coisa alguma por parti pris, mas pedindo provas e querendo ver e observar para crer; tais nos devemos mostrar sempre no estudo tão atraente das manifestações do Além.
Até agora, não vos falei senão do Sr. Rivail, professor emérito, autor pedagógico de renome. Nessa época, porém, da sua vida, de 1854 a 1856, um novo horizonte se rasga para esse pensador profundo, para esse sagaz observador. Então o nome de Rivail se obumbra, para ceder o lugar ao de Allan Kardec, que a fama levará a todos os cantos do globo, que todos os ecos repetirão e que todos os nossos corações idolatram. Eis aqui como Allan Kardec nos revela as suas dúvidas, as suas hesitações e também a sua primeira iniciação: “Eu me encontrava, pois, no ciclo de um fato inexplicado, contrário, na aparência, às Leis da natureza e que minha razão repelia. Nada tinha ainda visto nem observado; as experiências feitas em presença de pessoas honradas e dignas de fé me firmavam na possibilidade do efeito puramente material, mas a ideia, de uma mesa falante, não me entrava ainda no cérebro.
No ano seguinte — era no começo de 1855 — encontrei o Sr. Carlotti, um amigo de há vinte e cinco anos, que discorreu acerca desses fenômenos durante mais de uma hora, com o entusiasmo que ele punha em todas as ideias novas. O Sr. Carlotti era corso de origem, de natureza ardente e enérgica; eu tinha sempre distinguido nele as qualidades que caracterizam uma grande e bela alma, mas desconfiava da sua exaltação. Ele foi o primeiro a falar-me da intervenção dos Espíritos, e contou-me tantas coisas surpreendentes que, longe de me convencerem, aumentaram as minhas dúvidas. — Você um dia será dos nossos — disse-me ele. — Não digo que não — respondi-lhe eu —; veremos isso mais tarde.
Daí a algum tempo, pelo mês de maio de 1855, estive, em casa da sonâmbula Sra. Roger, com o Sr. Fortier, seu magnetizador. Lá encontrei o Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison, que me falaram desses fenômenos no mesmo sentido que o Sr. Carlotti, mas noutro tom. O Sr. Pâtier era funcionário público, de certa idade, homem muito instruído, de caráter grave, frio e calmo; sua linguagem pausada, isenta de todo entusiasmo, produziu-me viva impressão, e, quando ele me convidou para assistir às experiências que se realizavam em casa da Sra. Plainemaison, rua Grange-Batelière, no 18, aceitei com solicitude. A entrevista foi marcada para a terça-feira 5 de maio, às 8 horas da noite.
Foi aí, pela primeira vez, que testemunhei o fenômeno das mesas girantes, que saltavam e corriam, e isso em condições tais que a dúvida não era possível. Aí vi também alguns ensaios muito imperfeitos de escrita mediúnica em uma ardósia com o auxílio de uma cesta. Minhas ideias estavam longe de se haver modificado, mas naquilo havia um fato que devia ter uma causa. Entrevi, sob essas aparentes futilidades e a espécie de divertimento que com esses fenômenos se fazia, alguma coisa de sério e como que a revelação de uma nova lei, que a mim mesmo prometi aprofundar.
A ocasião se me ofereceu e pude observar mais atentamente do que tinha podido fazer. Em um dos serões da Sra. Plainemaison, fiz conhecimento com a família Baudin, que morava então à rua Rochechouart. O Sr. Baudin fez-me oferecimento no sentido de assistir às sessões hebdomadárias que se efetuavam em sua casa, e às quais eu fui, desde esse momento, muito assíduo. Foi aí que fiz os meus primeiros estudos sérios em Espiritismo, menos ainda por efeito de revelações que por observação. Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha feito, o método da experimentação; nunca formulei teorias preconcebidas; observava atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos procurava remontar às causas pela dedução, pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo como válida uma explicação, senão quando ela podia resolver todas as dificuldades da questão. Foi assim que sempre procedi em meus trabalhos anteriores, desde a idade de 15 a 16 anos. Compreendi, desde o princípio, a gravidade da exploração que ia empreender. Entrevi nesses fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro, a solução do que havia procurado toda a minha vida; era, em uma palavra, uma completa revolução nas ideias e nas crenças; preciso, portanto, se fazia agir com circunspeção, e não levianamente; ser positivista, e não idealista, para me não deixar arrastar pelas ilusões.
Um dos primeiros resultados das minhas observações foi que os Espíritos, não sendo senão as almas dos homens, não tinham nem a soberana sabedoria, nem a soberana ciência; que o seu saber era limitado ao grau do seu adiantamento, e que a sua opinião não tinha senão o valor de uma opinião pessoal. Esta verdade, reconhecida desde o começo, evitou-me o grave escolho de crer na sua infalibilidade e preservou-me de formular teorias prematuras sobre a opinião de um só ou de alguns. Só o fato da comunicação com os Espíritos, o que quer que eles pudessem dizer, provava a existência de um mundo invisível ambiente; era já um ponto capital, um imenso campo franqueado às nossas explorações, a chave de uma multidão de fenômenos inexplicados. O segundo ponto, não menos importante, era conhecer o estado desse mundo e seus costumes, se assim nos podemos exprimir. Cedo, observei que cada Espírito, em razão de sua posição pessoal e de seus conhecimentos, desvendava-me uma fase desse mundo, exatamente como se chega a conhecer o estado de um país interrogando os habitantes de todas as classes e condições, podendo cada qual nos ensinar alguma coisa e nenhum deles podendo, individualmente, ensinar-nos tudo. Cumpre ao observador formar o conjunto, com o auxílio dos documentos recolhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados e confrontados entre si. Eu, pois, agi com os Espíritos como o teria feito com os homens: eles foram, para mim, desde o menor até o mais elevado, meios de colher informações, e não reveladores predestinados.
A estas informações, colhidas nas Obras póstumas de Allan Kardec, convém acrescentar que a princípio o Sr. Rivail, longe de ser um entusiasta dessas manifestações e absorvido por outras preocupações, esteve a ponto de as abandonar, o que talvez tivesse feito se não fossem as instantes solicitações dos Srs. Carlotti, René Taillandier, membro da Academia das Ciências, Tiedeman-Manthèse, Sardou, pai e filho, e Didier, editor, que acompanhavam havia cinco anos o estudo desses fenômenos e tinham reunido cinquenta cadernos de comunicações diversas, que não conseguiam pôr em ordem. Conhecendo as vastas e raras aptidões de síntese do Sr. Rivail, esses senhores lhe enviaram os cadernos, pedindo-lhe que deles tomasse conhecimento e os pusesse em termos —, os arranjasse. Este trabalho era árduo e exigia muito tempo, em virtude das lacunas e obscuridades dessas comunicações; e o sábio enciclopedista recusava-se a essa tarefa enfadonha e absorvente, em razão de outros trabalhos.
Uma noite, seu Espírito protetor, Z., deu-lhe, por um médium, uma comunicação toda pessoal, na qual lhe dizia, entre outras coisas, tê-lo conhecido em uma precedente existência, quando, ao tempo dos Druidas, viviam juntos nas Gálias. Ele se chamava, então, Allan Kardec, e, como a amizade que lhe havia votado só fazia aumentar, prometia-lhe esse Espírito secundá-lo na tarefa muito importante a que ele era chamado, e que facilmente levaria a termo.
O Sr. Rivail, pois, lançou-se à obra: tomou os cadernos, anotou-os com cuidado. Após atenta leitura, suprimiu as repetições e pôs na respectiva ordem cada ditado, cada relatório de sessão; assinalou as lacunas a preencher, as obscuridades a aclarar, e preparou as perguntas necessárias para chegar a esse resultado.
O ano de 1862 foi fértil em trabalhos favoráveis à difusão do Espiritismo. No dia 15 de janeiro apareceu a pequenina e excelente brochura de propaganda:
O espiritismo na sua expressão mais simples. “O fim desta publicação”, diz Allan Kardec, “é apresentar, em quadro muito resumido, um histórico do Espiritismo e uma ideia suficiente da Doutrina dos Espíritos, para permitir ser compreendido o seu fim moral e filosófico. Pela clareza e simplicidade do estilo, procuramos pô-lo ao alcance de todas as inteligências. Contamos com o zelo de todos os verdadeiros espíritas, para que lhe auxiliem a propagação.” — Este apelo foi ouvido, porque a pequena brochura se espalhou em profusão, devendo muitos a esse excelente trabalho o terem compreendido o fim e o alcance do Espiritismo.
Tendo os nossos predecessores no Espiritismo transmitido a Allan Kardec, por ocasião do Ano-Novo, a expressão dos seus sentimentos de gratidão, eis aqui como respondeu o mestre a esse testemunho de simpatia:
“Meus caros irmãos e amigos de Lyon: A manifestação coletiva que tivestes a bondade de transmitir-me, por ocasião do Ano-Novo, produziu-me vivíssima satisfação, provando-me que conservastes de mim uma boa recordação, mas o que me causou maior prazer, nesse ato espontâneo de vossa parte, foi encontrar, entre as numerosas assinaturas que nele figuram, representantes de quase todos os grupos, porque é um sinal da harmonia que reina entre eles. Sou feliz por ver que compreendestes perfeitamente o fim dessa organização, cujos resultados desde já podeis apreciar, porque deve ser agora evidente para vós que uma sociedade única seria quase impossível. Agradeço, meus bons amigos, os votos que fazeis por mim; eles me são tanto mais agradáveis quanto sei que partem do coração, e são os que Deus atende. Ficai, pois, satisfeitos, porque Ele os ouve todos os dias, proporcionando-me a extraordinária satisfação no estabelecimento de uma nova Doutrina, de ver aquela a que me tenho dedicado engrandecer e prosperar, em minha vida, com uma rapidez maravilhosa; considero um grande favor do Céu ser testemunha do bem que ela já produz.
Esta certeza, de que recebo diariamente os mais tocantes testemunhos, me paga com usura todos os meus sofrimentos, todas as minhas fadigas; não peço a Deus senão uma graça, e é a de dar-me a força física necessária para ir até o fim da minha tarefa, que longe se encontra de estar concluída, mas, como quer que suceda, possuirei sempre a maior consolação, pela certeza de que a semente das ideias novas, espalhada agora por toda parte, é imperecível; mais feliz que muitos outros, que não trabalharam senão para o futuro, é-me permitido contemplar os primeiros frutos.
Se alguma coisa lamento, é que a exiguidade dos meus recursos pessoais me não permita pôr em execução os planos que concebi para um avanço ainda mais rápido; se Deus, porém, em sua sabedoria, entendeu dispor de modo diferente, legarei esses planos aos nossos sucessores, que, sem dúvida, serão mais felizes. A despeito da escassez dos recursos materiais, o movimento que se opera na opinião ultrapassou toda a expectativa; crede, meus irmãos, que nisso o vosso exemplo não terá sido sem influência. Recebei, portanto, as nossas felicitações pela maneira por que sabeis compreender e praticar a Doutrina.
No ponto a que hoje chegaram as coisas, e tendo em vista a marcha do Espiritismo através dos obstáculos semeados em seu caminho, pode dizer-se que as principais dificuldades estão superadas; ele conquistou o seu lugar e está assente sobre bases que de ora em diante desafiam os esforços dos seus adversários. Perguntam como uma Doutrina, que torna feliz e melhor, pode ter inimigos; é natural; o estabelecimento das melhores coisas choca sempre interesses, ao começar. Não tem acontecido assim com todas as invenções e descobertas que têm revolucionado a indústria? As que hoje são consideradas como benefícios, sem as quais não se poderia mais passar, não tiveram inimigos obstinados? Toda lei que reprime um abuso não tem contra si todos os que vivem dos abusos? Como quereríeis que uma Doutrina que conduz ao reino da caridade efetiva não fosse combatida por todos os que vivem no egoísmo? E sabeis que são eles numerosos na Terra!
No começo contaram sepultá-la com a zombaria; hoje veem que essa arma é impotente e que, sob o fogo dos sarcasmos, ela prosseguiu o seu caminho sem tropeçar. Não acrediteis que se confessem vencidos; não, o interesse material é tenaz. Reconhecendo que é uma potência com que é necessário de hoje em diante contar, vão dirigir-lhe assaltos mais sérios, mas que só servirão para melhor atestar a fraqueza deles. Uns a atacarão diretamente por palavras e atos, e a perseguirão até na pessoa dos seus adeptos, que eles se esforçarão por desalentar a poder de embaraços, enquanto que outros, secretamente e por caminhos disfarçados, procurarão miná-la surdamente. Ficai prevenidos de que a luta não está terminada; fui avisado de que eles vão tentar um supremo esforço. Não tenhais, porém, receio: o penhor da vitória está nesta divisa, que é a de todos os verdadeiros espíritas: Fora da caridade não há salvação. Arvorai-a bem alto, porque ela é a cabeça de Medusa para os egoístas. A tática, posta já em prática pelos inimigos dos espíritas, mas que eles vão empregar com novo ardor, é tentar dividi-los criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e o ciúme. Não vos deixeis cair no laço, e tende como certo que quem quer que procure um meio, qualquer que seja, para quebrar a boa harmonia, não pode ter boa intenção. É por isso que vos recomendo useis da maior circunspeção na formação dos vossos grupos, não somente para vossa tranquilidade, como no próprio interesse dos vossos labores. A natureza dos trabalhos espíritas exige calma e recolhimento. Ora, não há recolhimento possível se se está preocupado com discussões e com a manifestação de sentimentos malévolos. Não haverá sentimentos malévolos se houver fraternidade; não pode, porém, haver fraternidade em egoístas, ambiciosos e orgulhosos. Entre orgulhosos, que se suscetibilizam e ofendem por tudo, ambiciosos que se sentirão mortificados se não tiverem a supremacia, egoístas que não pensam senão em si, a cizânia não pode tardar a introduzir-se, e com ela a dissolução. É o que desejariam os nossos inimigos, e é o que eles procuram fazer.
Se um grupo quer estar em condições de ordem, de tranquilidade e de estabilidade, é preciso que nele reine o sentimento fraternal. Todo grupo ou sociedade que se formar, sem ter caridade efetiva por base, não tem vitalidade; enquanto que aqueles que forem fundados de acordo com o verdadeiro espírito da Doutrina olhar-se-ão como membros de uma mesma família que, não sendo possível habitarem todos sob o mesmo teto, moram em lugares diferentes. A rivalidade entre eles seria um contrassenso; ela não poderia existir onde reina a verdadeira caridade, porque a caridade não se pode entender de duas maneiras.
Reconhecei, pois, o verdadeiro espírita na prática da caridade por pensamentos, palavras e obras, e persuadi-vos de quem quer que nutra em sua alma sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja ou de ciúme, mente a si próprio se tem a pretensão de compreender e praticar o Espiritismo.
O egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como matam os povos e a sociedade em geral...” Tudo mereceria citação nestes conselhos, tão justos quão práticos, mas é preciso que nos limitemos, em razão do tempo de que podemos dispor.
A pedido dos espíritas de Lyon e de Bordeaux, Allan Kardec fez, em setembro e outubro, uma longa viagem de propaganda semeando por toda parte a boa-nova e prodigalizando conselhos, mas somente aos que lhos pediam; o convite feito pelos grupos lioneses estava subscrito por quinhentas assinaturas. Uma publicação especial deu conta dessa viagem de mais de seis semanas durante a qual o mestre presidiu a mais de cinquenta reuniões em vinte cidades, onde por toda parte foi alvo do mais cordial acolhimento e se sentiu feliz por verificar os imensos progressos do Espiritismo. A respeito das viagens de Allan Kardec, como certas influências hostis houvessem espalhado o boato de que eram feitas a expensas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, sobre cujo orçamento igualmente ele sacava de antemão todos os seus gastos de correspondência e de manutenção, o mestre rebateu, assim, essa falsidade:
Várias pessoas, sobretudo na província, haviam pensado que os gastos com essas viagens corriam por conta da Sociedade de Paris. Vimo-nos forçados a refutar esse erro quando a ocasião se apresentou. Aos que pudessem ainda partilhar dessa opinião, lembramos o que foi dito em outra circunstância (número de junho de 1862), que a Sociedade se limita a prover as despesas correntes e não possui reservas. Para que pudesse formar um capital, teria de visar o número; é o que não faz, nem quer fazer, pois seu objetivo não é a especulação e o número nada acrescenta à importância de seus trabalhos. Sua influência é toda moral e o caráter de suas reuniões dá aos estranhos a ideia de uma assembleia grave e séria. Eis o seu mais poderoso meio de propaganda. Assim, não poderia ela custear semelhante despesa. Os gastos de viagem, como todos os necessários às nossas relações com o Espiritismo, são cobertos por nossos recursos pessoais e por nossas economias, acrescidos do produto de nossas obras, sem o que nos seria impossível acudir a todas as despesas consequentes à obra que empreendemos. Dizemos isto sem vaidade, unicamente em homenagem à verdade e para edificação dos que imaginam que entesouramos. ( Revista espírita, novembro de 1862.)
Em 1862 Allan Kardec fez também aparecer uma Refutação às críticas contra o espiritismo no ponto de vista do materialismo, da ciência e da religião.
Em abril de 1864 publicou a Imitação do evangelho segundo o espiritismo, com a explicação das máximas morais do Cristo, sua aplicação e sua concordância com o Espiritismo. O título dessa obra foi depois modificado, e é hoje Oevangelho segundo o espiritismo. Aproveitando-se da época das férias, Allan Kardec fez em setembro de 1864 uma viagem a Antuérpia e a Bruxelas. Expondo aos espíritas belgas o seu modo de ver acerca dos grupos e sociedades espíritas, recorda o que já havia dito em Lyon, em 1861: “Vale mais, portanto, haver em uma cidade cem grupos de dez a vinte adeptos, em que nenhum se arrogue a supremacia sobre os outros, do que uma única sociedade que a todos reunisse. Esse fracionamento em nada pode prejudicar a unidade dos princípios, desde que a bandeira é uma só e que todos se dirigem para um mesmo fim.”
As sociedades numerosas têm sua razão de ser sob o ponto de vista da propaganda, mas, quanto aos estudos sérios e continuados, é preferível constituírem-se grupos íntimos.
No dia 1o de agosto de 1865, Allan Kardec fez aparecer uma nova obra — O céu e o inferno ou a Justiça divina segundo o espiritismo, na qual são mencionados numerosos exemplos da situação dos Espíritos, no mundo espiritual e na Terra, e as razões que motivaram essa situação.
Os admiráveis êxitos do Espiritismo, seu desenvolvimento quase incrível, criaram-lhe inúmeros inimigos e, à proporção que ele se foi engrandecendo, aumentou, também, a tarefa de Allan Kardec. O mestre possuía uma vontade de ferro, um poder de combatividade extraordinários; era um trabalhador infatigável; de pé, em qualquer estação, desde às 4h30min, respondia a tudo, às polêmicas veementes dirigidas contra o Espiritismo, contra ele próprio, às numerosas correspondências que lhe eram dirigidas; atendia à direção da Revista espírita e da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, à organização do Espiritismo e ao preparo das suas obras. Esse excesso físico e intelectual esgotou-lhe o organismo, e repetidas vezes os Espíritos precisam chamá-lo à ordem, a fim de obrigá-lo a poupar a saúde. Ele, porém, sabe que não deve durar mais que uns dez anos ainda: numerosas comunicações o preveniram desse termo e lhe anunciaram mesmo que a sua tarefa não seria concluída senão em nova existência, que sucederia a breve trecho à sua próxima desencarnação; por isso ele não quer perder ocasião alguma de dar ao Espiritismo tudo o que pode, em força e vitalidade. Em 1867 faz uma curta viagem a Bordeaux, Tours e Orléans; em seguida põe novamente mãos à obra, para publicar, em janeiro de 1868, A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. É das mais importantes esta obra, porque constitui, sob o ponto de vista científico, a síntese dos quatro primeiros volumes já publicados.
Allan Kardec ocupa-se, em seguida, de um projeto de organização do Espiritismo, por meio do qual espera imprimir mais vigor, mais ação à filosofia de que se fez apóstolo, procurando desenvolver-lhe o lado prático e fazer-lhe produzir seus frutos. O objeto constante das suas preocupações é saber quem o substituirá em sua obra, porque sente que o desenlace está próximo; e a constituição que elabora tem precisamente por fim prover às necessidades futuras da Doutrina Espírita. Desde os primeiros anos do Espiritismo, Allan Kardec havia comprado, com o produto das suas obras pedagógicas, 2.666 m2 de terreno na avenida Ségur, atrás dos Inválidos. Tendo essa compra esgotado os seus recursos, ele contraiu com o Crédit Foncier um empréstimo de 50.000 francos para fazer construir nesse terreno seis pequenas casas, com jardim; alimentava a doce esperança de recolher-se a uma delas, na Vila Ségur, e torná-la-ia, depois da sua morte, asilo, a que se pudessem recolher na velhice os defensores indigentes do Espiritismo. Em 1869 a Sociedade Espírita era reconstituída e tornada sociedade anônima, com o capital de 40.000 francos, dividido em quarenta ações, para a exploração da livraria, da Revista espírita e das obras de Allan Kardec. A nova sociedade devia instalar-se no dia 1o de abril, à rua de Lille, no 7. Allan Kardec, cujo contrato de arrendamento na passagem Sainte-Anne estava quase a terminar, contava retirar-se para a Vila Ségur, a fim de trabalhar mais ativamente nas obras que lhe restava fazer e cujo plano e documentos se achavam já reunidos. Estava, pois, em todos os preparativos de mudança de domicílio, quando a 31 de março a doença de coração que o minava surdamente pôs termo à sua robusta constituição e, como um raio, o arrebatou à afeição dos seus discípulos. Essa perda foi imensa para o Espiritismo, que via desaparecer o seu fundador e mais poderoso propagandista, e lançou em profunda consternação todos os que o haviam conhecido e amado.
Hippolyte-Léon-Denizard Rivail — Allan Kardec — faleceu em Paris, rua e passagem Sainte-Anne, 59, 2a circunscrição e Mairie de la Banque, em 31 de março de 1869, com 65 anos, sucumbindo da ruptura de um aneurisma.
Unânimes sentimentos acolheram a dolorosa notícia, e numerosíssima concorrência acompanhou ao Père-Lachaise, sua derradeira morada, os despojos mortais daquele que fora Allan Kardec, daquele que, através dos tempos, brilhará como um meteoro fulgurante na aurora do Espiritismo.
Quatro orações foram proferidas à beira do túmulo do mestre: a primeira, pelo Sr. Levent, em nome da Sociedade Espírita de Paris; a segunda, pelo Sr. Camille Flammarion, que não fez somente um esboço do caráter de Allan Kardec e do papel que cabe aos seus trabalhos no movimento contemporâneo, mas ainda, e sobretudo, um exame da situação das ciências físicas, no ponto de vista do mundo invisível, das forças naturais desconhecidas, da existência da alma e da sua indestrutibilidade. Em seguida, tomou a palavra o Sr. Alexandre Delanne, em nome dos espíritas dos centros afastados; e, depois, o Sr. E. Muller, em nome da família e dos seus amigos, dirigiu ao morto querido os últimos adeuses.
A senhora Allan Kardec tinha 74 anos por ocasião da morte de seu esposo. Sobreviveu-lhe até 1883, ano em que, a 21 de janeiro, se extinguiu, com 89 anos, sem herdeiros diretos. Erraria quem acreditasse que, em virtude dos seus trabalhos, Allan Kardec devia ser uma personagem sempre fria e austera. Não era, entretanto, assim. Esse grave filósofo, depois de haver discutido pontos mais difíceis da Psicologia e da Metafísica transcendental, mostrava-se expansivo, esforçando-se por distrair os convidados que ele frequentemente recebia na Vila Ségur; conservando-se sempre digno e sóbrio em suas expressões, sabia adubá-las com o nosso velho sal gaulês em rasgos de causticante e afetuosa bonomia. Gostava de rir com esse belo riso franco, largo e comunicativo, e possuía um talento todo particular em fazer os outros partilharem do seu bom humor.
Todos os jornais da época se ocuparam da morte de Allan Kardec e procuraram medir-lhe as consequências. Eis aqui, a título de lembrança, o que a esse respeito escrevia o Sr. Pagès de Noyez, no Journal de Paris, de 3 de abril de 1869: Aquele que por tão longo tempo ocupou o mundo científico e religioso sob o pseudônimo de Allan Kardec, chamava-se Rivail e morreu na idade de 65 anos. Vimo-lo deitado num simples colchão, no meio da sala das sessões a que há tantos anos ele presidia; vimo-lo com o semblante calmo como se extinguem aqueles a quem a morte não surpreende e que, tranquilos quanto ao resultado de uma vida honesta e laboriosamente preenchida, imprimem como que um reflexo da pureza de sua alma sobre o corpo que abandonaram. Resignados pela fé em uma vida melhor, e pela convicção da imortalidade da alma, inúmeros discípulos tinham vindo lançar um derradeiro olhar àqueles lábios descorados que, ainda na véspera, lhes falavam a linguagem da Terra. Mas eles recebiam já a consolação de além-túmulo: o Espírito Allan Kardec veio dizer-lhes quais haviam sido as suas comoções, quais as suas primeiras impressões, quais, dos que o haviam precedido no além-túmulo, tinham vindo ajudar-lhe a alma a desprender-se da matéria. Se “o estilo é o homem”, aqueles que conheceram Allan Kardec em vida não podem deixar de ficar emocionados pela autenticidade dessa comunicação espírita.
A morte de Allan Kardec é notável por uma coincidência estranha. A Sociedade fundada por esse grande vulgarizador do Espiritismo acabava de desaparecer. Abandonado o local, retirados os móveis, nada mais restava de um passado que devia renascer sobre novas bases. No fim da última sessão, o presidente fizera as suas despedidas; preenchida a sua missão, retirava-se da luta cotidiana, para se consagrar inteiramente ao estudo da Filosofia espiritualista. Outros, mais jovens — intrépidos — deveriam continuar a obra e, fortes por sua virilidade, impor a verdade por sua convicção. Para que referir os detalhes da morte? Que importa o modo por que se partiu o instrumento, e por que consagrar uma linha a esses fragmentos de ora em diante mergulhados no turbilhão imenso das moléculas? Allan Kardec morreu na sua hora própria. Com ele terminou o prólogo de uma religião vivaz, que, irradiando todos os dias, cedo terá iluminado toda a humanidade. Ninguém melhor que ele podia conduzir a bom termo essa obra de propaganda, à qual era necessário sacrificar as longas vigílias que alimentam o espírito, a paciência que educa com o correr do tempo, a abnegação que afronta a estultícia do presente, para não ver senão a irradiação do futuro.
Allan Kardec terá, com suas obras, fundado o dogma pressentido pelas mais antigas sociedades. Seu nome, apreciado como o de um homem de bem, está há muito tempo vulgarizado pelos que creem e pelos que receiam. É difícil praticar o bem sem chocar os interesses estabelecidos. O Espiritismo destrói muitos abusos, reanima muitas consciências doloridas, dando-lhes a certeza da prova e a consolação do futuro.
Os espíritas choram hoje o amigo que os deixa, porque o nosso entendimento, por assim dizer, material, não se pode submeter a essa ideia de transição; pago, porém, o primeiro tributo a essa inferioridade do nosso organismo, o pensador ergue a cabeça e através desse mundo invisível, que ele sente existir além do túmulo, estende a mão ao amigo, que já não existe, convencido de que o seu Espírito nos protege sempre.
O presidente da Sociedade Espírita de Paris está morto, mas o número de adeptos cresce todos os dias, e os corajosos, os quais pelo respeito ao mestre se deixavam ficar no segundo plano, não hesitarão em se evidenciarem, por bem da Grande Causa. Esta morte, que o vulgo deixará passar indiferente, não deixa de ser, por isso, um grande fato para a humanidade. Não é mais o sepulcro de um homem, é a pedra tumular enchendo esse imenso vácuo que o materialismo cavara aos nossos pés e sobre o qual o Espiritismo esparge as flores da esperança. Um ponto sobre o qual não atraí a vossa atenção, mas que devo assinalar, é a caridade verdadeiramente cristã de Allan Kardec; dele se pode dizer que a mão esquerda ignorou sempre o bem que fazia a direita, e que esta ainda menos conheceu os botes que à outra atiravam aqueles para quem o reconhecimento é um fardo excessivamente pesado. Cartas anônimas, insultos, traições, difamações sistemáticas, nada foi poupado a esse intrépido lutador, a essa alma grande e varonil que penetrou integralmente na imortalidade.
O despojo mortal de Allan Kardec repousa no Père-Lachaise, em Paris, sob modesta lápide erigida pela piedade dos seus discípulos; é aí que se reúnem todos os anos, desde 1869, os adeptos que têm guardado fidelidade à memória do mestre e conservam preciosamente no coração o culto da saudade.
E já que um sentimento análogo nos reúne hoje, repitamos bem alto, minhas senhoras, meus senhores: Honra! Honra e glória a Allan Kardec!
Henri Sausse
Que a graça e a paz sejam conosco!